Por que falar de ócio?
[...] Diante do mundo de evasão, distração espetáculo que nos rodeia, o ser humano se torna cada vez mais limitado, cada vez mais dependente das máquinas, menos ator e mais espectador de uma realidade irreal. Falar de ócio se transforma neste contexto, num questionamento de cada um consigo mesmo, de como ser um pouco mais livre para fazer o que se quer. (...) a vivência de ócio é uma experiência que nos ajuda a nos realizar, nos conhecer, nos identificar, nos sentir melhores, sair da rotina, fantasiar e recuperar o equilíbrio das frustrações e desenganos.

(Cuenca, 2003, p. 32).

sexta-feira, 2 de março de 2012

O olhar de meu pai


Eram tempos difíceis para meus pais. Meu pai afastado do trabalho por uma cirurgia de úlcera no estômago e com três filhos ainda pequenos para criar, se via derrotado e fracassado, como soldador da fábrica pertencente à família Matarazzo não poderia mais exercer sua profissão.
Entretanto, usou desse tempo de ócio para imaginar uma nova profissão, porém, era uma época difícil e as portas se fechavam, em meio a este caos, surgiu a ideia de trabalhar com aquilo que mais gostava, ou seja, a fotografia. Todavia, não tinha conhecimento algum sobre o domínio dessa arte.

Os Diários Associados


Mesmo não sabendo absolutamente nada de fotografia, meu pai dirigiu-se ao prédio dos “Diários Associadas”, do visionário Assis Chateaubriand, que entre o final dos anos 1930 e início dos anos 1960 contou com mais de cem jornais, emissoras de rádio e TV, revistas e agência telegráfica, sendo o maior conglomerado de mídia da América Latina.

A ousadia de meu pai não foi de toda infrutífera, resultou num emprego, porém, não na área que pretendia, mas sim, na cabina do elevador, como ascensorista do edifício dos Diários. Para quem estava desempregado há algum tempo e recebendo o auxilio humilhante da Caixa...
Não desanimou, ao contrário, aproveitou a oportunidade e, nesse sobe e desce de elevador conheceu muitos fotógrafos e jornalistas profissionais daquela época. Não demorou muito para que o pessoal (funcionários) dos Diários percebesse que o seu entusiasmo e interesse pelas reportagens jornalísticas eram sinceros e, assim, lhe deram uma chance para trabalhar como iluminador. Carregou por um bom tempo uma cruzeta de madeira pesada, com três lâmpadas fixadas na ponta, dando cobertura aos repórteres dos jornais.
Aproveitava suas horas vagas para pedir emprestado dos colegas uma câmera fotográfica para tirar umas fotos que, depois de reveladas, usava-as para discutir com os profissionais sobre os seus erros e acertos. E foi assim que conseguiu uma promoção para trabalhar como Auxiliar de Fotógrafo e depois como Fotógrafo.

A televisão do Chatô

Assis Chateaubriand
Em 1950 fundava o primeiro canal de TV




Câmera da Tupi

Meu pai deixou os Diários para trabalhar na TV Tupi, aprendeu muito sobre televisão e filmagens, depois foi para TV Excelsior – canal 9, do criativo Edson Leite, onde teve a oportunidade de desenvolver sua arte atuando como repórter cinematográfico da TV Excelsior até sua falência em meados de 1970. 
 
                                                                                    Logotipo da TV Tupi                        



                                                                                     Logotipo da TV Excelsior

Como Repórter Cinematográfico trabalhou para algumas emissoras de televisão, entre elas a TV Cultura, SBT, encerrando a sua carreira na Rede Globo de televisão na década de 80.

O desejo de meu pai sempre foi o de partilhar com as pessoas as imagens que capturava com sua câmera, fazendo com que elas também pudessem ver aquilo que ele observava.
Não como uma forma de ganhar a vida, mas também para realizar um desejo fundamental de mostrar às pessoas seu olhar sobre o mundo.

Hoje, as tecnologias fazem as pessoas chegarem mais facilmente à fotografia. Pode-se mostrar o próprio trabalho em álbuns online, blogs ou websites. E, sem dúvida, esta é uma maneira de crescer através da aprendizagem e de conquistar as pessoas com as imagens escritas com a luz e que representa  mais que uma palavra escrita com lápis ou falada com a língua...porque a imagem fotográfica  revela o silêncio da alma.

Meu pai dizia o seguinte: “O seu olhar é o pré-requisito para a fotografia. O olhar é o que faz de você um fotógrafo único. O olhar é sua “criatividade”. É o que lhe permite captar em fotografias o que você vê e sente… é o que lhe permite extrair com beleza o que está escondido em uma cena aparentemente banal”.
Não foi bem assim que ele me falou, mas foi assim que senti e apreendi quando ele me ensinou.

Quando analiso meu pai na foto que postei acima, sou o observador observando o olhar do fotógrafo que apertou o dedo para tirar aquela foto, constatando que este é também o meu olhar sobre meu pai. A câmera integrava seu corpo como se fizesse parte dele e a firmeza com que suas mãos a acolhiam, revelavam que o dedo era submisso ao olhar criativo que ele tinha.

Nenhum comentário:

Postar um comentário